terça-feira, 4 de janeiro de 2011

O SELEIRO HONORATO

A tenda de selaria de seu Honorato fica por trás de sua casa. É um pequeno cômodo de taipa coberto de telhas antigas e pretas da ação da natureza. A frente tem um pequeno alpendre, o chão é de barro batido, tem um banco grande enteriço e largo, cabe folgadamente cinco pessoas sentadas. Dentro da selaria uma mesa baixa onde o seleiro trabalha, uma máquina de costura SINGER de costurar couro. Toda ferramenta de trabalho está em cima da mesa grande e larga, facas afiadas de ponta fina, cutelos, formã, agulhas, esquadros, réguas e lápis de riscar moldes de material de selaria, formas de madeira de fazer sapato de campo, um armário cheio de moldes de vestas de couro, pé de ferro, martelo de sapateiro, pregos, brochas e taxas espalhadas nas divisões da mesa. O velho não trabalha só no feitio de selas ou concertos, qualquer material de couro ele faz com esmero e dedicação. Sua rede está sempre armada no centro de sua oficina. De vez em quando aparece alguém para fazer alguns remendos em selas, mas são poucos os serviços que aparece. Meia sola em sapatos ninguém faz mais, todos agora usam tênis, sapatos de campo, ninguém usa mais todos estão com botas de couro fino. Mas o velho Honorato é radical, não fechou sua oficina. Diz ele que todos agora só usam selas confeccionadas em São Paulo, não existe mais vaqueiros, agora os vaqueiros rebanha o gado e as miunças de moto, arreios são comprados nas capitais, são arreios finos de couro de primeira qualidade, as selas de hoje são todas enfeitadas, que parece roupa de baianas. As vaquejadas hoje é esporte de ricos, inventaram até uma faixa para o boi cair dentro e marcar pontos, já viu muita gente ficar falido com vaquejada. Gosta muito de ler, tem jornais e revistas antigas, guardadas num quarto dos fundos da casa. Sempre quem aparece e lhe traz jornais e revistas velhas, é o amigo Aurino que todos os meses, chega para fazer o pagamento do pessoal de sua propriedade, e sempre o visita. E naquele domingo Aurino apareceu trazendo muitos jornais e revista para o velho Honorato ler, e passar o seu tempo que está muito ocioso.

--- Bom dia seu Honorato, como está passando com esse tempo?

--- Bem do meu jeito, não tenho nada a reclamar, estou no meu capital.

Aurino entregou as revistas e os jornais velhos para o amigo, que o agradeceu muito, teria o que o ler o mês inteiro, até ele trazer mais revista e jornais para ele passar o tempo no próximo mês.

--- Seu Honorato eu queria lhe fazer um convite, mas o senhor é arredio demais, fica sempre trancado na sua, não quer sair dessa oficina por nada desse mundo.

--- Você é muito bom em dizer que eu sou arredio, eu sou mesmo e carrasco, exagerado, recalcado, exigente e ignorante.

--- É isso mesmo seu Honorato, vamos passar uns dias na praia comigo.

--- Não, daqui de dentro desse buraco só saio para outro buraco, ou então podem me jogar no tabuleiro para os urubus me comerem. Eu não gosto mesmo da vida, morrer e viver para mim não faz diferença. E outra coisa, todo matuto quer conhecer o mar, eu não tenho um pingo de vontade de conhecer essa besteira que é o mar.

--- Mas seu Honorato, a vida não é desse jeito, vamos mudar um pouco, saía dessa sua rotina, vamos comigo passar um dia diferente. Eu sei que sua vida é muito difícil, vamos sair um pouco dessa rotina.

--- Minha vida não é difícil, eu acho muito boa, eu não quero nada dessa vida. Para mim está tudo muito bom, eu queria mesmo era não ter nascido, eu fui gerado erradamente, eu devia ter saído numa punheta do meu pai, não merecia ter nascido, não gosto desse mundo, sou revoltado com o mundo. Esse mundo não está prestando para nada.

--- Seu Honorato nossa amizade é de longo tempo, eu nunca lhe perguntei porque o senhor ficou tão arredio desse jeito, o que aconteceu para o senhor ficar tão azedo assim?

--- Aurino o único amigo que tenho é você, amigo mesmo, hoje em dia ninguém tem amizade por ninguém, e se tem é por algum interesse, nós somos amigos porque eu não preciso de você e você não precisa de mim. Você vai ser a única pessoa que contarei a minha vida, e porque sou desse jeito. Nem a minha mulher eu dou o cabimento de falar do meu passado com ela.

Eu nasci no pé da Serra aguda, meu pai nunca me colocou na escola, se hoje eu sei ler e escrever, foi ele que me ensinou, ele era muito fechado, cabeça dura, já previa o que ia acontecer nesse mundo grande que Deus fez a besteira de fazer. Ensinou-me a profissão de selaria, e sempre tomando cuidado em mim, dizia: Daqui pra frente você vai se virar só, se quiser ganhar o mundo pode ir embora, senão vamos ficar por aqui mesmo. E falava abertamente do governo dizia que nenhum prestava, nunca queira nada que o Governo lhe oferecia, pois todos eles querem tirar o couro dos pobres. Esta e a realidade do que ele dizia. Falava que o governo deu uma aposentadoria aos agricultores sem eles terem contribuído com um tostão furado a previdência, mais toma todinho nos impostos e nos empréstimos consignados, tem velhos aí que estão atolados nos bancos, não pede esmola porque não tem uma cuia, e eu vivo tranqüilo não quero aposentadoria do governo. Nunca me registrei, nunca votei, não tenho identidade, eu sou uma pessoa que não existe para o país e é assim que eu quero viver. Minha mulher mora naquela casa dada pelo governo, mais eu não vou nem lá, nunca entrei para ver como é que é, tem televisão, que os filhos compraram para ela, tem geladeira, tem tudo. Quando ela apronta o almoço vem deixar aqui onde estou. Ela mesmo quem registrou os meninos por conta dela, por mim não registrava nenhum, energia eu não quero aqui na minha oficina, nem água encanada, eu não quero nada de beneficio do governo, eu quero viver minha vida contra o governo, qualquer um, nunca votei, não dou o cabimento de votar nessas ratazanas da política.

--- Mas seu Honorato não seja desse jeito, o senhor é a única pessoa no mundo que pensa dessa maneira.

--- Eu sei Aurino. Já lhe disse uma vez, que vim ao mundo mais não gostei dele, eu ainda não me suicidei, porque eu acho uma covardia quem tira sua própria vida, mas eu não gosto de viver. Eu acho tudo errado isso é carrancismo de mim mesmo, e não abro dos meus pensamentos de jeito maneira.

--- Mais tudo isso vai levar o senhor a quê?

--- A nada, eu sei que o povo está todos numa correria danada para ficar rico, eu não tenho essa ganância comigo, eu não tenho inveja de ninguém, vou ficar aqui na minha rede esperando a hora de morrer e pronto. A minha maior revolta é ter que chegar na feira e não mais encontrar material de selaria para vender, onde estão os cabrestos, onde está a selas de antigamente, onde estão os chapéus de couro. Hoje todos estão montados numa moto, em tempo de matar agente atropelado. Você não vê no meio da feira panelas de barro para vender, não vê rolo de fumo para vender, o que você ver muito é filme de putaria e mulher com o rabo de fora, isso é uma safadeza, é vida de vagabundos. Não me acostumo com esse mundo de vadiagem. Não se escuta mais uma música que preste, essas músicas da Bahia, e essas bandas das bandas do Ceará só cantam safadeza. O mundo virou um cabaré, tem putas para todo lado, as putas hoje são da sociedade. Mulher bota chifre nos maridos por brincadeira, isso é jeito de se viver, onde esse mundo vai parar, vão todos para o inferno. Principalmente esses homens que chamam de veados que se veste de mulher, isso num é uma porcaria. Você já viu que coisa errada, homem amigado com homem, mulher amigada com mulher, isso num é uma safadeza.

--- Mas seu Honorato o mundo mudou, os costumes hoje são diferentes.

--- Pôs eu nunca achei nada bonito nesse mundo, pra mim é tudo do mesmo jeito, tanto faz aqui como em qualquer outro lugar, eu só vejo gente besta, se emocionado com besteira. Gente emocionada porque foi ver a neve no Rio Grande do Sul, gente que vai para o exterior para se mostrar dizer que é viajado, menino querendo ir para a Disneylândia, tudo emocionado, vão ser besta na casa do diabo.

--- É como eu digo ao senhor, a tecnologia estar mudando o mundo, tudo está ficando mais perto, o povo estar ganhando melhor, quase todos tem instrução. Ávida é assim mesmo o senhor tem que se acostumar.

--- Mudou e mudou muito mais pra pior. É porque nem eu nem você daqui a duzentos anos não estaremos vivo, tivemos essa sorte, esse mundo não vai prestar pra nada, onde hoje onde eu moro, deve estar construído um prédio de uns vinte andares, não vai ter mais local para se plantar, nem para se criar, o mundo vai ter tanta gente que não vai ter lugar nem para se cagar. Os jornais dizem que vai faltar água no mundo, as águas são as mesmas, o que vai acontecer que vai ter gente demais para gastar água, então a água vai ser pouca. Você veja que á trinta anos atrás se pescava qualquer época do ano, peixe grande peixe pequeno, não tinha essa frescura de defeso, porque tem defeso? Porque tem gente demais para comer, e se não deixar o peixe desovar o peixe vai acabar. Quando eu era menino aqui na nossa região tinha todas as qualidades de animais, tatu bola, veado, gato do mato, canário da terra, rolinha caldo de feijão, gato maracajá, onça suçuarana, quer dizer, o povo comeu tudo hoje não se acha nem o rastro. E daqui a duzentos anos o que tem de bom nesse mundo? Nada, por isso que eu quero morrer primeiro, e tem mais quero me enterrar num buraco limpo, sem caixão e sem rede.

--- Certo Seu Honorato, o senhor tem os seus pontos de vista, com toda razão. Até o mês que entra.

--- Até Aurino.

Manoel Julião Neto

Nenhum comentário:

Postar um comentário