segunda-feira, 29 de novembro de 2010

O MENINO QUE O PAI QUERIA QUE FOSSE DOUTOR

Joaquim tinteiro vaqueiro velho das antigas, responsável e trabalhador. Foi muito por muito tempo vaqueiro da família Tassino aqui em Pedro Avelino, na fazenda Logradouro. Joaquim prestava muita atenção nos procedimentos dos filhos, e deles, notou que Francisco com disposição e inteligência fora do comum, ágil nas coisas, aprendia tudo com facilidade. Francisco tinha apenas 12 anos de idade, então Joaquim tinteiro achou que seu filho estava se perdendo dentro daquela fazenda, ele merecia coisa melhor, falou para D. Cruzinha sua esposa:

--- Vou levar Francisco para estudar na rua, esse menino está se perdendo aqui dentro desse mato, de vaqueiro só abasta eu, que não arranjei nada, nem um pedaço de terra para mim, e não vou estruir a inteligência do meu filho como os outros pais fazem, enterrando os filhos nas fazendas dos outros.

E no sábado dia da feira, arrumaram Chico, colocaram poucas roupas que tinha, numa bolsa de palha de carnaúba. Joaquim tinteiro colocou Chico na garupa da burra cardan, e tirou com Chico em procura das ruas de Pedro Avelino.

Chico era um menino taludo da cara larga cheia de sarda e vermelha, cabelos loiros desse duro, o famoso cabelo de espeta caju, o pau da venta vivia eternamente suado, andava com as calças sempre com uma perna arregaçada até o joelho e a outra perna até em baixo, vivia assobiando qualquer música entre os dentes, batendo com os dois dedos indicadores nos peitos para acompanhar o ritmo, esse era o perfil de Chico quando era menino.

Joaquim tinteiro chegou em frente da casa de D. Albertina, que era a madrinha de Chico. Tirou Chico de cima da burra por um braço, entraram de casa adentro, Chico todo desconfiado, pelos cantos das paredes, menino de dentro do mato tem vergonha de tudo, o pai disse:

--- Bom dia comadre Albertina!

--- Bom dia compadre Joaquim, o que o trás por aqui?

--- Vim trazer uns ovos que Cruzinha mandou para a senhora, e eu tenho um assunto para tratar com a senhora.

Joaquim mandou Chico tomar abença a madrinha, no que Chico fez prontamente. E Joaquim debulhou suas idéias para a comadre o que queria:

--- Comadre Albertina, o que eu quero dizer para a senhora que Francisco é um menino muito inteligente, como à senhora está vendo, desse tamanho, mas já amansa boi e burro brabo, sabe capar qualquer animal, cura bicheira de cabrito, faz uma cerca como ninguém. Comadre Francisco é um menino muito esperto, está se perdendo dentro daquele mato, eu quero botar ele para estudar. E quero que senhora faça de Francisco um Doutor para nos servir no futuro.

Tudo concretizado, tudo acertado, conselhos dados, e Chico ficou estudando na casa da madrinha. Só que Chico dizia baixinho:

--- Eu quero é ser vaqueiro, eu não quero ser doutor.

Na casa da madrinha Chico trabalhava pra se lascar. Botava água em dois burros do açude do governo, moia dois quilos de milho, pela manhã e dois pela tarde para fazer cuscuz, botava lenha nos burros, esse era o trabalho de Chico, e na parte da tarde ia para escola particular de Dona Munitinha.

Nessa época nossa turma que era mais velha do que Chico, e nós estávamos enveredando na vida pregressa da cachaça. E sempre que estamos bebendo escondido nos armazéns de Mulatinho que ficava em frente à casa de D. Albertina. Sempre que estávamos bebendo escondido, Chico chegava e ficava por ali rodeando, e Chico ficou sendo o nosso táxi oficial, só era dizer: Chico vá comprar uma garrafa de cachaça, Chico fazia carreira, comprava e voltava em cima do rastro, não tinha empalho com ele, e o pagamento, Chico tomava uma coisinha de cachaça na tampa da garrafa, não podia beber muito era muito pequeno. E Chico não largava os nossos cóis, para onde nós íamos, levava Chico a tiracolo. Só sei que Chico aprendeu a beber cachaça e a fumar. O dinheiro de Chico era pouco. Só recebia algum dinheiro quando seu pai vinha no dia de sábado, quando seu pai vinha para feira. E Chico viciou-se a fumar, comprava fumo e papel, para fumar a semana toda, quando o papel de enrolar cigarro de fumo acabava, Chico rasgava as paginas da bíblia da madrinha para enrolar cigarro. Essa travessura de Chico foi comunicada ao pai, que veio a rua e deu uma surra grande em Chico, e prometeu que se ele fizesse outra o levava para fazenda de volta, ele não ia seria mais Doutor.

Nossa turma foi a um aniversário, e levamos Chico, que meteu a cara na cachaça com vontade, embriagou-se, foi dormir, quando acordou foi aos gritos:

--- Me derem água, senão em morro de sede. Eu quero água, eu quero água!

Por causa desse alarme, colocaram-lhe o apelido de Chico d’água, mas o seu nome verdadeiro é: Francisco Brás Câmara, só que ninguém o conhece pelo seu nome verdadeiro, só Chico d’água.

D. Albertina comunicou a Joaquim Tinteiro o porre que Chico tinha tomado, que veio buscá-lo para casa, Chico não ia ser mais Doutor, agora ia ser vaqueiro, era o que ele queria.

E os tempos se passaram, fui embora para Natal, fui para a Marinha, passei mais de quinze anos sem vir a Pedro Avelino, quando em 1978 volto à terrinha. Quem encontro no meio da feira, Chico d’água, chapéu de couro atolado na cabeça, foi uma festa, Chico d’água já era vaqueiro o mesmo, já corria até em vaquejada. Partimos para dentro do mercado tomar cachaça com picado de porco. Recordamos muitas coisas, a conversa foi longa. Chico puxou do bolso o papel e fumo para fazer um cigarro, e eu me lembrei das páginas da bíblia de D. Albertina, e relembrei a Chico, rimos muito. Finalmente Chico d’água me convidou para o seu casamento dele com a minha amiga Gorete.

Fui ao casamento dos meus amigos, dançamos forró a noite toda, comemos buchada de bode com cachaça, foi uma maravilha de casamento. E Chico foi passar a lua de mel e trabalhar na fazenda Condado de Mulatinho.

Com os anos Chico depravou-se na cachaça e na irresponsabilidade, Gorete ficou grávida, era uma sexta-feira, e Gorete falou para Chico:

--- Chico vá correndo na rua trazer um carro para me levar para a maternidade.

Chico pegou o cavalo e tirou para a rua a procura de um transporte para levar Gorete para a maternidade. Quando chegou na rua encontrou uns amigos que iam para uma vaquejada em Pendências, chamaram Chico, e ele foi. Quando chegou em casa foi na segunda-feira na parte da tarde. Márcia já tinha nascido e Gorete já estava na beira do fogo fazendo comida para a menina. As histórias de Chico são hilárias.

Certa vez, Chico foi para feira, era sábado, Gorete ficou tomando conta das ovelhas e das vacas. Chegando na feira Chico fez logo as compras comprou o grosseiro e a mistura, a mistura foi dois quilos de carne de bode, um frango congelado. Colocou tudo dentro de um saco, e guardou na loja de Jairo, só sairia mais tarde para casa, estava muito cedo para chegar em casa, foi tomar umas lapadas de cachaça antes de partir com sua feira para fazenda o condado onde morava. Quando estava tomando uma meiota (ainda não existia latinha) quando chegou Odílio com os cavalos, o chamou num canto e fez uma proposta:

--- Chico vamos uma vaquejada em Santana dos Matos

--- E minha feira quem vai deixar em casa?

--- Manda nos carros da feira que passa por lá.

Chico nem se ligou de mandar a feira para casa, já estava chumbado de birita o que desse para ele estava tudo bem, tinha deixado um resto de feira em casa dava para Gorete passar o sábado. E Chico d’água se mandou para Santana na camioneta de Odílio, passou o pedaço do sábado, o domingo, só chegou na segunda feira à tarde. Ai foi que lembrou da feira, só que não lembrava onde tinha deixado, saiu procurando por bares, lojas e armazéns, só faltava Jairo abrir o comércio. De repente surge Jairo no beco da farmácia, Chico foi a seu encontro e perguntou:

--- Jairo eu deixei minha feira na loja?

--- Não sei só olhando, agora eu sei que na loja está uma catinga de podre danado, vou mandar Josildo da uma olhada, eu acho que é algum rato que morreu.

Quando Jairo abriu a loja, a catinga de podre subiu, Chico foi atrás de umas caixas onde se lembrou que tinha deixado a feira, não agüentou a catinga, a carne de bode e o frango congelado tinham ficado podre. E Chico d’água chegou em casa à tardinha, bêbado e sem a mistura.

Chico levava a vida num descompasso maior do mundo. Anos depois Chico saiu da fazenda de Mulatinho e foram morar em outra fazenda perto do distrito de Baixa do Meio. Gorete sua mulher era muito trabalhadora, e não dava muita atenção à vida que Chico levava.

Um dia o dono da fazenda fez um negócio com Gorete, todos os borregos enjeitados da fazenda que Gorete conseguisse escapar, dava a ela a metade, e Gorete topou a parada. Levava o dia correndo a procura de borregos com uma mamadeira na mão para alimentar os pequenos animais. No final do ano o dono rachou os borregos, Gorete teve direito a doze animais.

Por azar, dizia ela, ficou grávida novamente, estava tratando os seus bichos de ovelhas, com o maior cuidado do mundo, estava com os planos feitos, quando estivesse perto de ter o menino, iria comprar as coisas: banheira, fraldas, sabonete, mantas e outras coisas mais. Quando faltavam uns três meses para ter o menino, Gorete vendeu os animais ao marchante do distrito de Baixa do meio, caminho da cidade de Macau, ficou tudo acertado. Mas avisou ao marchante:

--- Vou pegar esse dinheiro domingo, quero fazer as compras na feira.

No domingo marcado Gorete não pode ir a Baixa do meio para receber o dinheiro, e mandou Chico d’água pegar o dinheiro, mas preveniu:

--- Não gaste o dinheiro viu Chico, é para eu fazer a arrumação do menino.

--- Deixe de besteira, eu estou acostumado a pegar em dinheiro.

Chico foi até o distrito de Baixa do meio e recebeu o dinheiro, e ficou na rodoviária, esperando um transporte para voltar para casa. Sentou-se um bom pedaço, e nada de aparecer um transporte, pediu uma cerveja para passar o tempo, ficou bebiricando devagar, não podia chegar em casa embriagado, Gorete daria braba com ele. Nesse instante parou um carro na rodoviária, desceu um papudinho com um violão na mão, o povo começou a cercar o individuo, Chico ficou admirado, quem era aquele cara que o povo caiu em cima, perguntou a uma rapariga velha que não parava de chorar, quem é esse:

--- É Bartô Galeno, que está aqui de passagem, ele vai fazer um show hoje em Macau.

Bartô Galeno meteu o pau a beber e a tocar violão, juntou muita gente, quase acaba a feira de Baixa do meio. Chico d’água também era fã de Bartô, desde o tempo da radio Brejui de Currais Novos. Chico entusiasmado pedia de duas cervejas de uma vez, já bebia no gargalo da garrafa. Ai Bartô cantou.

Amor você não sabe como eu estou sofrendo

Amor você não sabe como a solidão me apavora

Pois você é o grande amor da minha vida.

Chico d’água já terrivelmente bêbado gritou:

--- Bartô canta Malena.

Bartô Galeno cantou Malena e depois cantou no toca fita do meu carro. Despediu-se de todos e foi embora para a cidade de Macau. Chico d’água imediatamente pegou um ônibus da Empresa Cabral que ia para Macau, e foi assistir o show de Bartô Galeno. Chegando em Macau foi procurar Bartô Galeno no hotel, onde lhe informaram que o cantor tinha ido para a praia de Canapum. Chico d’água foi atrás.

Na praia Bartô estava rodeado de raparigas cantando e tocando violão, e Chico se meteu na farra, tomava cerveja e gritava bem alto:

--- Esse cara canta demais, ou bicho macho!

Terminou a farra e Bartô foi para o hotel, e Chico ficou vagando pelas ruas de Macau. A noite foi ao show de Bartô num clube local. Terminou o show e Chico d’água foi dormir na rodoviária. Amanheceu o dia, Chico acordou com o sol na cara, passou uma água no fucinho e ficou esperando a saída do ônibus que vinha para Pedro Avelino. Chegou a duas horas da tarde, enfiou a cara na cachaça de novo, só foi aparecer em casa na terça à tarde. Gorete perguntou:

--- Chico cadê o dinheiro dos bichos?

--- Gastei!

--- Como é que vou comprar as coisas do menino, banheira, roupas, fraldas, mamadeiras e outras coisas mais, me diga?

--- Pra quê banheira, filho de pobre toma banho em agrida e toma leite numa meia garrafa, e fraldas você faz de panos velhos. E não me aborreça não.

E o meu amigo Chico d’água continuou fazendo das suas, abandonou tudo pela cachaça. A uns quatros anos atrás, Chico começou a ver um trem dentro de casa, um negão querendo matá-lo. Chico estava doente, o levaram para Hospital João Machado. Quando Chico ficou bom, uma assistente social telefonou para Pedro Avelino perguntando se alguém conhecia Francisco Brás Câmara, ninguém conhecia. Ainda passou uns três dias internado até que descobrissem que Francisco Brás Câmara era Chico d’água.

Hoje Chico não bebe mais, é um homem de responsabilidade, gordo que só um porco.

Manoel Julião Neto

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