domingo, 20 de fevereiro de 2011

COMPROMISSO É COMPROMISSO

Pau darco distrito de uma pequena cidade do Nordeste, pobreza inclemente, casebres de taipa caindo paredes, varas e estacas aparecendo, portas e janelas velhas feitas de lascas de imburana e cobertas de palhas de carnaúbas. Não existe mais do que quinze. Á distância do distrito para a cidade mais próxima dista de cinco léguas. Os moradores nos finais de semana em lombo de animais vara as veredas esburacadas para fazerem suas moquecas de feira. É um sofrimento sem tamanho para um povo que sofre tanto nos recantos dos distritos e vilas do Nordeste. A comunidade na maioria é de adultos, meninos são criados nus entre os animais como carneiros, porcos e cachorros, as barrigas são estufadas, sempre trazem uma chupeta pendurada no pescoço por um cordão sujo. Não existem escolas, nunca aparece médicos, as doenças são tratadas por curandeiras, ou então remédios de meisinha feitos de folhas e cascas de árvores da região.
Foi nesse ambiente hostil que nasceram Damião e Amélia, na mesma década, cresceram juntos, os seus pais sempre dizendo, que quando ficassem adultos casariam, os dois colocaram isso na cabeça, não se afastavam um do outro, eram um visgo os dois, nas brincadeiras, nas quadrilhas do mês de São João, e nas poucas festas que acontecia no distrito onde residiam.
Ficaram adultos Damião com 20 anos e Amélia com 19 anos, continuavam se amando com a mesma intensidade desde quando eram crianças. Damião tornou-se um jovem trabalhador e responsável, sua vida era trabalhar e amar Amélia.
Mas a vida tem seus percalços, Damião perdeu os pais, o jovem rapaz ficou só no mundo, para seu consolo tinha o amor de Amélia, que também o amava muito. Damião mudou-se para casa da amada que fazia tudo para ele, os pais da moça aceitaram tudo aquilo, não importava que os vizinhos falassem, confiavam nos dois, sabiam que eram ajuizados e não fariam besteira antes do casamento.
Em 1958 a seca tomava conta de toda região do Nordestino. Damião e o pai de Amélia se matavam nas frentes de trabalho ministrado pelo Exército Brasileiro. Eram oito horas de trabalho, carregando barro na padiola para consertarem estradas e paredes de pequenos açudes. No final do mês recebiam farinha, feijão carne de jabá, bulgol e rapadura. Damião não estava satisfeito com aquela situação, não era escravo para trabalhar só pela comida, precisava de dinheiro, para comprar outras coisas necessária dentro de uma casa. Tomou uma decisão para sua vida, possuía uma vaca e um garrote, vendeu os dois, resolveu ganhar a vida em São Paulo, era analfabeto, mas tinha disposição para o trabalho, e no sul precisavam quem tivesse disposição para o pesado, assim diziam os que foram para lá, e voltaram para passear anos depois. Antes de partir, comprou um par de alianças e ficou noivo de Amélia, falou para ela e seus pais, que iria viajar para Sul, mas estava firmando um compromisso com todos: - Que quando arranjasse um emprego no sul, voltaria para casar com Amélia, que ela fosse se arrumando, que logo, logo, levaria todos com ele para residir em São Paulo. Todos aceitaram a proposta. Houve muito choro por parte de Damião e Amélia, não sabiam viver um longe do outro, seria duro para os dois se acostumarem com a distância que os separavam.
Damião partiu para sua viagem solitária, muito triste, sempre chorando na carroceria do pau de arara que o levaria a São Paulo. Era uma viagem cansativa, viagem para mais de dezoito dias, um sofrimento que só quem estava precisando se arriscava. Dentro de um saco levava duas calças velhas e duas camisas esgarçadas.
Damião foi solto no largo de Santo Amaro em São Paulo, ficou assombrado com o tamanho da cidade, aquilo era um mundo diferente, nunca tinha visto aquelas casas em cima umas das outras, que as pessoas chamavam de apartamento, pessoas bem vestidas, mulheres bonitas andando nas ruas, ele com aquela calça de manipulam e camisa de algodãozinho ralo no meio de uma praça, não sabia o que fazer e nem para onde ir. Ficou sentado no banco da praça, estava com fome, tinha dinheiro, mas nem comida sabia comprar. Quando apareceu um negrão em sua frente que perguntou:
--- Chegando agora Baiano?
--- Não sou Baiano.
--- Todos que chegam lá do Nordeste aqui, é chamado aqui de Baiano.
--- Tô chegando, não sei para onde ir?
--- Tem coragem de trabalhar no pesado?
--- Muito.
--- Então vamos, que vou arranjar um trampo para você.
--- O que é isso?
--- Serviço, trabalho, ralação, tudo tem um nome só.
--- Por quê está fazendo isso por mim?
--- Eu trabalho numa firma de construção civil, e ando a procura de gente que tenha coragem de trabalhar no pesado. Fico sempre nessa praça onde descarregam os Nordestinos. Com você já é o quarto que levo hoje para trabalhar.
O negrão levou Damião para a construção de um prédio que estavam fazendo ali próximo, onde tinha alojamentos. A comida é por conta do trabalhador, todos cozinhavam juntos na mesma panela, numa trempe com pedaços de paus.
Damião logo se acostumou com o trabalho e com vida da cidade grande, já fazia meses que estava ralando na construção do prédio, fazia de tudo, carregava tijolos, virava traços, carregava latas de massa, era pau para toda obra.
Amélia fazia suas arrumações para o casamento, dia e noite pensando no dia que Damião voltasse para casar com ela, não via a hora disso acontecer.
Todos os meses Damião pedia a um amigo que sabia ler e escrever para fazer carta para Amélia, só que nas cartas que os amigos faziam para ele, não podia externar os sentimentos que sentia pela amada. Precisava aprender a ler e escrever, só assim podia dizer tudo que o seu coração pedia.
Fazia três anos que Damião estava em São Paulo, tinha aprendido a ler e escrever com um professor pago pela construtora, isso tudo pelo método do Mestre Paulo Freire. Tinha aprendido o ofício de pedreiro, ganhava melhor, já saía com os amigos para os forrobodós que a cidade oferecia nas suas periferias.
As suas cartas para Amélia foram rareando, até parar de vez de escrever. Damião esqueceu Amélia, acostumou na cidade grande, não lembrava mais de sua terra, dos amigos e tão pouco de Amélia. Arranjou uma namorada do Ceará e a embuchou, logo casou, comprou casa, constituiu uma boa família, tinha filhos e continuava a trabalhar na construção civil, na mesma construtora que iniciou quando chegou a São Paulo. Era mestre de obras, tinha cinco filhos. Seus filhos foram crescendo e Damião com todo cuidado com a educação de sua prole. Sua a luta era grande para formá-los, era uma família feliz, já tinha netos e netas, vivia aposentado dentro de casa sem fazer nada, lembrava de sua terra Pau Darco, pensava como estariam todos, será que Amélia ainda é viva, e os pais dela estarão vivos também? Impossível, eram velhos demais quando saiu de lá. Amélia deve ter se casado, deve ter muitos filhos sofrendo naquele fim de mundo. Não estava arrependido da mulher que escolheu para ser a mãe dos seus filhos, mas devia uma satisfação para Amélia e uma visita a sua terra, mesmo que fosse a última coisa para fazer na sua vida, tinha certeza que não voltaria mais lá.
Fez uma reunião com os filhos a mulher e os netos para comunicar que viajaria para o Nordeste, queria rever os amigos de infância, visitar o seu torrão Natal, fazia 40 anos que estava em São Paulo e nunca mais tinha voltado.
Tudo acertado com a família, Damião viajou de volta as suas origens para visitar os seus conterrâneos e sua terra.
Chegando no distrito de Pau Darco, onde foi criado, Damião procurava pelos amigos de infância, uns tinha morrido, outros vivos, vivendo de uma aposentadoria dada pelo Governo, todos mais pobres do que quando ele tinha saído á 40 anos atrás. Damião lamentava a vida dos seus conterrâneos e perguntou a um deles:
--- E Amélia, casou?
--- Não, ela ainda mora na mesma casa.
Damião saiu para fazer uma visita a Amélia, cujo os pais tinha morrido, ela vivia só. Damião pegou a vereda que dava para casa de Amélia, viu os lugares onde tanto andou, olhou para um pé de carauba, onde muitas vezes descansou na sua sombra, a casa onde viveu com os pais só tinha o terreno, e alguns paus de pé, aquela capoeira seca, lhe trazia varias recordações, o barreiro onde bichos bebiam água, estava seco com o leito todo rachado. Passava um filme na cabeça de Damião, uma angústia tomava conta do seu coração, lembrava do seu sofrimento na caatinga, das frentes de trabalho que enfrentou, as suas recordações eram as piores possíveis.
Chegou na casa de Amélia, a casa tinha mudado pouca coisa, os santos nas paredes eram os mesmos, amarrados com fitas vermelhas e azuis, só o chão que não era mais de barro batido, foi substituído por cimento, não era mais coberta de palhas, e sim de telhas. Entrou mais um pouco chegou na cozinha, o fogão a lenha estava no mesmo local, a parede preta da fumaça, copos de alumínio bem areados em cima de uma bandeja, coberta com um pano. Amélia estava escorada na porta da cozinha, velha e feia, cara enrugada, cara de sofredora, perguntou:
--- Está me conhecendo Amélia?
--- Claro, não é Damião meu noivo? Você já foi na igreja falar com padre para fazer o nosso casamento. Você custou demais, e eu contínuo aqui lhe esperando.
Damião olhou para Amélia e viu na sua mão direita, a aliança desgastada que tinha lhe dado quando firmou compromisso com ela e os pais dela, de que voltaria para casar. Damião sentiu uma pena profunda do que tinha feito com Amélia, e ao mesmo tempo um arrependimento do que tinha feito com aquela pobre mulher que tinha perdido a vida esperando por ele. Tentou-lhe explicar que era casado, e tinha filhos e netos e que não podia mais casar com ela.
Amélia com toda raiva e impo falou para Damião.
--- Pode parar por ai. Então você não é homem de palavra, devia ter me avisado para eu seguir minha vida, porque quem assume compromisso tem que cumprir, você nunca esqueça na sua vida, que compromisso é compromisso, agora pegue a merda de sua aliança e pode ir para casa do diabo. Puxe daqui, fora da minha casa cabra sem palavra.
Damião saiu apressado, enquanto a aliança tinia nas pedras onde Amélia jogou.




Manoel Julião Neto

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